A história relata o que aconteceu
O silêncio narra
o que acontece
(José Tolentino Mendonça)
Foi durante o processo de escrita da minha tese que eu percebi o quanto sou apaixonada por histórias policiais. Talvez fosse meio óbvio, mas fica difícil se enxergar assim quando não você nunca leu nenhum livro da Agatha Christie e só deu uma espiada no Cão dos Baskerville ( nesse caso, o sobrenatural falou mais alto). Quando eu digo que gosto de policial, sempre completo que gosto de um policial específico: série vaga-lume, Marcos Rey, sabe? O enigma da televisão, Um cadáver ouve rádio, Sozinha no mundo… naturalmente, O escaravelho do diabo, da Lúcia Machado de Almeida, também entra nessa lista.
Veja bem, não é que eu não goste das histórias de mistério clássicas. Mas ao contrário dos meus colegas de turma, que liam tentando adivinhar o assassino antes do final e comparavam as pistas como se fossem eles próprios Holmes, Poirot e Dupin, eu só curtia a leitura. Eu nunca fui nenhum gênio dedutivo e já naquela época me identificava muito mais com o detetive de Rey, investigando a morte de um cantor de bolero mulherengo, do que com aquela racionalidade anglo-saxônica.
Quando penso na relação que eu tive desde cedo com as histórias policiais, não é de se estranhar que já adulta, tenha me encantado pelos filmes Giallo e sua distorção da lógica de um quebra-cabeça cujas peças precisavam ser cientificamente encaixadas para fazerem sentido. Mais do que uma linha de raciocínio impecável, me fascinam as imagens da jovem bailarina de Suspiria tentando relembrar aquilo que ouviu quando entrou na Academia de balé no meio da chuva, assim como as pistas que surgem em sonhos em Faca no coração e O pássaro da pluma de cristal. Foi esse mesmo fascínio por uma história de crime em que as respostas não são todas dadas ao final que me fez escrever uma tese sobre os livros A esmorga, de Eduardo Blanco Amor e Balada da praia dos cães, de José Cardoso Pires.
O primeiro, o relato de uma noite de bebedeira que termina com dois mortos e algumas navalhadas. O segundo, um corpo que surge no meio do areal, cujos assassinos são companheiros de luta política e a amante. Nas duas obras, a sensação de que andamos por um corredor escuro em que ouvimos vozes e sentimos corpos que correm por nós, sem que possamos ter certeza daquilo que percebemos. “Meu romance é uma valsa de conspiradores”, disse o Cardoso Pires, e eu repito essa informação em tudo que escrevo acerca desse livro, porque, acima de tudo, o autor quis contar uma história sobre o Salazarismo, porém, ao fazê-lo, não seguiu pelo caminho óbvio da busca de uma suposta fidelidade histórica - nenhum autor daquela geração o fez, na verdade. Ao escrever o primeiro grande romance sobre a ditadura de quase cinquenta anos, o autor de O delfim decide manter a escrita cifrada de sua obra anterior e caminhar pelos labirintos da investigação policial, sem um Sherlock Holmes de inspiração, mas um inspetor que mistura suas obsessões pessoas com o crime e, desse modo, devassa ao leitor o que se tornara a sociedade portuguesa após seus anos de fascismo.
Cardoso Pires, condutor da valsa, em foto de Carlos Gil.
Escrever sobre Balada da praia dos cães me fez perceber que aquilo que me fascinava nos romances policiais não era o jogo intelectual de resolução do crime, mas o quanto da natureza humana se expõe nessas obras, principalmente seu lado mais violento. E aqui entra o meu principal palpite da razão dos romances policiais terem sido vilipendiados por tanto tempo, mas seu fascínio persistir e encontrar sempre novas formas de existir, cuja mais recente talvez seja todo o material acerca de True Crime, ou seja, crimes que de fato ocorreram no nosso mundo e são reapresentados de modo ficcional ou não. Assim como muitos dos aspectos de nossa vida, estes materiais true crime são problematizados. Entre os questionamentos, surgem denúncias efetivas da falta de empatia e bom senso na hora de narrar um enredo sobre gente de verdade que foi brutalmente assassinada, ou no mínimo uma certa dúvida do tipo “ será que a gente deveria fazer disso nosso entretenimento?”.
E veja, eu acho que existe sim um apelo muito grande para estas histórias violentas que se explica também por sadismo ou perversidade, que existem na natureza humana. É lógico que a naturalização da violência contra grupos marginalizados também é encontrada nessas histórias, e eu não estou excluindo isso do horizonte. Entretanto, eu acho que pode existir um outro lado para o nosso fascínio por narrativas sobre crimes. E a resposta talvez esteja em um episódio de Law and Order.
Agora, sendo esse o primeiro texto de verdade da newsletter, vamos ter uma conversa importante: 1- Eu vou dar spoiler sim. Eu sempre dou spoiler. Essa coisa de odiar spoiler é uma palhaçada. Se eu precisar contar o final para você entender meu ponto, eu vou contar; 2 - Você vai sobreviver a saber o final de um episódio de uma série velha e vai me amar por isso; 3 - Não, eu não vou problematizar Law & order. Não hoje. Não vou porque qualquer pessoa que pense um pouquinho sabe que uma narrativa pode ser referenciada para se chegar a uma reflexão sem necessariamente estar sendo aplaudida por cada mínimo detalhe dela. Obrigada pela atenção. Podemos continuar:
Sim, estamos falando da série de investigação policial, mais precisamente do Special Victims Unit, ainda mais precisamente do episódio 13 da sexta temporada, em que uma nova pista (anônima) sobre um assassinato do passado surge e os detetives retomam a investigação. Em resumo: um menino foi assassinado anos antes. O acusado foi um serial killer, pedófilo, que havia matado outros garotos, mas jurava que não daquela vez. Naturalmente, os detetives não acreditam no cara, mas as pistas vão surgindo até que se confirma que, de fato, o crime fora cometido por um vizinho da vítima, um rapaz adolescente, este sim abusado pelo acusado inicial, o tal pedófilo.
Após essa revelação, o que mais me chamou a atenção no episódio foi o quanto o silêncio sobre determinadas violências resulta na sua repetição. Deacon, o adolescente violentado por um adulto, passa a abusar de outras crianças, causando mais vítimas. Uma delas passa uma vida inteira em silêncio, até reunir coragem o suficiente para agir ( daí o envio da pista anônima). Quando questionado pelos policiais a razão disso, revela o pânico que sentiu com o nascimento de seu filho e a possibilidade de que, assim como seu abusador, ele fosse uma vítima que geraria muitas outras. Naturalmente, essa é a hora que o psicólogo da equipe policial explica a ele que isso é um senso comum, sem nenhuma comprovação científica. Também reforçam a importância do rompimento daquele silêncio, mesmo tantos anos depois. Foi nesta cena que eu me lembrei da epígrafe deste texto, os versos de José Tolentino Mendonça:
A história relata o que aconteceu
O silêncio narra
o que acontece
Eu não tenho dúvida que a descrição do episódio que você acabou de ler foi profundamente desconfortável, tanto quanto foi para mim escrevê-lo. Narrar a violência, principalmente aquela que estilhaça outros seres humanos, nunca nos deixa intactos. Mas eu me pergunto se a necessidade que sentimos de contar e ouvir essas histórias não é justamente uma tentativa de evitar que elas se perpetuem, como o poema de Mendonça defende: silenciar sobre um crime é permitir que ele siga acontecendo.
Também me lembrei, imediatamente, das muitas páginas sobre a relação entre violência, memória e testemunho que precisei encarar para escrever a minha tese, movida, acima de qualquer coisa, por uma pergunta que eu quero responder, mas tenho medo de não gostar da resposta: “A arte pode alguma coisa diante da barbárie?” Diante dos horrores que habitam o nosso mundo, a arte serve pra alguma coisa? Ela consegue impedir que novas tragédias aconteçam?
Ao final da escrita da tese, eu cheguei a algumas conclusões sobre isso, porém, não vou falar delas hoje. Algumas semanas depois de ver o episódio da série, recebi no grupo de whatsapp da minha família uma foto de um livro e uma reclamação. O livro em questão é “A operação do Tio Onofre”, da Tatiana Belinky. A reclamação era pelo fato de que na primeira página do livro, à caneta, estava assinado meu nome completo, com a minha caligrafia de criança. Isso porque se trata de uma história infantil: uma menina tem o hábito de apelidar os objetos da casa como se fossem parentes. Seu pai e sua mãe não só gostam da brincadeira, como estão totalmente habituados a lógica da garota. Um dia, quando ela e a mãe estão sozinhas, dois ladrões invadem e estão prestes a arrombar o cofre da família. Porém, o telefone toca e as duas mulheres, ameaçadas, precisam fingir naturalidade para o terceiro membro da família, que está do outro lado da linha. É nesse momento que a protagonista pergunta para o pai “como tinha sido a operação do Tio Onofre”, pois ela e a mãe estavam nervosas. Algumas páginas depois, as duas são resgatadas pela polícia, acompanhada do pai, que entendera a conversa em código da filha. E a “barriga de Tio Onofre termina intocada”.
Para entender a reclamação das minhas primas pelo fato de eu ter escrito meu nome à caneta num livro, é preciso saber que eu e minha gêmea somos as mais novas de dez primos. Como uma maioria de nós estudou no mesmo colégio, todos os nossos materiais escolares que pudessem ser compartilhados eram repassados de um a um, numa vibe meio família Weasley mesmo. Naturalmente, os livros divididos só recebiam o nosso sobrenome ou, no máximo, um nome a lápis. Eu poderia tecer muitas considerações sobre porque uma criança, que dividia TUDO na vida dela com a irmã GÊMEA, a irmã mais velha e os sete primos, poderia ter cometido a rebeldia de assinar seu nome à caneta, mas só vou adiantar que “A operação do Tio Onofre” foi dos meus livros preferidos da minha infância. Eu li o livro na casa da minha avó antes de adotar como paradidático e vibrei quando esse momento chegou. Tudo isso porque eu achava a solução da protagonista brilhante. A ideia de que uma menina da minha idade pudesse solucionar um problema tão sério quanto um assalto a mão armada, usando apenas a sua inteligência, me arrebatava. Eu era uma criança normal, nem muito inteligente nem muito burra, sem grandes talentos além de ser estudiosa e, talvez por isso, enlouqueci com a sagacidade do truque.
Anos depois, eu poderia finalizar essa estreia de newsletter com todas as conclusões a que cheguei na minha tese sobre porque gostamos de histórias violentas e, provavelmente, vou fazer isso, em algum texto futuro. Dessa vez, eu apenas queria dizer que nós gostamos de histórias policiais, de histórias com crimes, traumas e situações desafiadoras, principalmente as que são solucionadas, porque elas nos mostram que mesmo os problemas mais difíceis podem ser resolvidos. Em um mundo que parece cada dia mais cheio deles, em que velhos traumas ressurgem, nós talvez estejamos precisando desse alento.