Eu quero mais
Algumas coisas que eu tenho pensando sobre o imaginário do neoliberalismo e nossos sonhos
Olá olá, leitores!!
Talvez a essa altura vocês tenham pensando que eu saí pra comprar cigarros e nunca mais ia voltar. Junho foi um mês ainda mais caótico do que o normal, em meio a aulas particulares, um segundo doutorado e concursos pra pesquisador/professor.
Eu vou tentar dar uma compensada esse mês postando também alguns textos antigos meus do Medium que, assim como o do “Adeus minha concubina”, não foram lidos pela grande maioria dos assinantes daqui. Mas, isso só semana que vem, porque hoje eu queria trazer algumas coisas que tem fervilhado na minha cabeça. Boa leitura!
“São os cães dos ricos”, em Catalão
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Eu tenho pensando ( e lido ) bastante sobre neoliberalismo. Uma das razões disso é por conta do doutorado, outra é porque eu tenho pensando muito sobre como a gente vive um imaginário de escassez profunda. Eu não sou a primeira pessoa a dizer isso, acadêmicos ou não-acadêmicos. A Isadora Sinay falou disso nesse texto dela aqui, e muitas pessoas que tem escrito sobre capitalismo e democracia tem pensando nisso. Eu não vou ficar fazendo citações longas ( se você quiser ler meus textos do doutorado, manda um oi que eu te repasso os pdfs) mas, basicamente, existe esse diagnóstico de que uma das maiores merdas que o neoliberalismo implementou nas nossas vidas é a aceitação de uma escassez profunda em diferentes aspectos.
Quando eu digo que a gente aceita, eu não estou dizendo que, conscientemente, nós achamos que a vida tem que ser dura e difícil mesmo e que Margaret Thatcher é nossa rainha. Estou querendo dizer que foi se normalizando uma série de retiradas de direitos sociais, garantias, além de um certo senso comum de que a vida é aguentar até o final de semana, pagar os boletos e assistir Netflix. O texto da Isa Sinay, que eu compartilhei ali em cima , fala justamente sobre esse aspecto de comportamento e relacionamentos. O que eu acho mais brilhante da sua argumentação é que não se trata de uma crítica moral ao comportamento individual das pessoas, mas a um imaginário por trás de certas falas que parece defender que a gente tem mais é que querer pouco da vida mesmo; que se a gente espera pouco, a gente sofre menos e consegue ir vivendo sem grandes sustos e decepções, mas também sem grandes emoções ou transformações.
Recentemente, um texto de uma certa influencer na Folha de são Paulo me deixou profundamente incomodada, não pela afirmação de que nós estamos percebendo que talvez a tal estabilidade de que nossos pais falavam não seja tão terrível assim, mas pelo fato de o texto mandar a gente abrir mão dos próprio sonhos. Porque, na boa, mas que frase merda. Que frase merda!
Primeiro, porque essa ideia de que optar por formas de trabalho mais tradicionais é matar os sonhos é um sinal gigante da vitória do neoliberalismo: as revoluções e transformações só podem vir do trabalho, logo, se ele não está sendo revolucionário, a revolução necessariamente morreu. Eu já teria muitos problemas com essa lógica, mas conversando com a minha irmã, a
, eu percebi que essa é uma ideia ainda mais idiota porque tem UM MONTE de artistas trabalham com coisas tradicionais, banais, garantindo uma certa estabilidade, para poder fazer arte. E veja: eu não tenho nada contra a discussão de como o tempo passa e nós entendemos que certas coisas que nossos pais defendiam não eram só conservadorismo, mas a visão de alguém que já tinha visto mais coisa da vida. Agora, eu acho SURREAL a ideia imediata de que isso é abrir mão dos sonhos, como se justamente a descoberta de que a nossa realização como indivíduos e coletividade independe do trabalho não fosse justamente uma oportunidade pra repensar o que realmente são os nossos sonhos e ir atrás deles.A segunda parte do meu incômodo com esse imaginário de aceitação da escassez é como ele sempre surge associado a uma visão pragmática e realista da realidade em detrimento de um olhar idealista e sonhador, que não é capaz de dar conta das demandas reais que existem no mundo. É agora que eu vou trazer uma coisa que eu aprendi com meu professor de teoria política: todo idealista é um crítico da realidade. Ele pode cair no erro de querer que o mundo se dobre a suas concepções, mas jamais é alguém que não entende o que existe de errado na realidade. E, acima de qualquer questão sobre o que é melhor, ser um realista ou um idealista, minha grande crítica a uma visão que acha que ser crítico de verdade é não acreditar mais em utopias. Isso porque, para certas pessoas, a utopia precisa existir, porque a vida delas não cabe na escassez. A grande maioria das pessoas não cabe nesse mundo neoliberal, porque ela é a exacerbação de uma ordem masculina, cisgênero, heteronormativa e branca. Qualquer grupo que não se encaixe nela está e sempre esteve brigando pra ficar vivo e construir uma outra realidade em que sua vida seja segura. Essa é certamente a grande lição que todos devíamos ter aprendido com quem veio antes de nós: ser comportado não vai te proteger. O que te protege é solidariedade, amor entre seus companheiros e muita construção pra mudar o mundo. Ficar quietinho na sua, fingindo que você não vai incomodar o capitalismo sem exigir muito dele, não te protege de nada.
Não por acaso, lideranças indígenas brasileiras como o Ailton Krenak e o Davi Kopenawa tem falado repetidamente sobre a importância do sonho, não só como metáfora, mas como o processo biológico em si: é preciso vivenciar a experiência de enxergar a realidade de uma outra forma, buscando outra possibilidades para ela. E eu acho isso de uma inteligência e beleza incríveis, porque o que vejo por trás dessa defesa é a ideia de que o processo nos ensina e nos transforma, o que tem tudo a ver com o que eu escrevi até agora.
Veja bem, eu não sou uma pessoa com grandes leituras de Paulo Freire e Bell Hooks. Mas eu fui professora e coordenadora de projetos de educação popular por sete anos. E a maior lição que eu tirei desses espaços é que a educação popular emancipa não pelo seu conteúdo, mas pelos seus processos: não basta aprender que não foram os portugueses que descobriram o Brasil, ou que a língua é viva, ou que pode confiar na vacina. Isso tudo é importante pra cacete, mas o que realmente transforma a vida de todos os que estão nestes projetos são as práticas que nos tiram da maneira padrão de produzir conhecimento e nos relacionar. A autonomia do aluno não vem de mostrar para ele uma verdade secreta sobre o mundo, mas de colocá-lo num lugar de produtor de conhecimento, de indivíduo solidário e engajado com seu grupo. Porque todos os processos dos espaços de educação popular propiciam isso e os alunos encontram sentido nessas práticas. O processo, acima de qualquer coisa, nos educa, porque nos mostra que existem uma série de possibilidade que nós ainda não tínhamos conhecido.
Quando alguém afirma que a prática é que o realmente conta, isso não deveria ser no sentido de um debate moral, de crítica a uma suposta hipocrisia das pessoas que falam muito e fazem pouco. Dizer que a prática molda a realidade é quase literal, porque é apena arriscando e tentando fazer as coisas que existe uma possibilidade de elas saírem do mundo dos sonhos e entrarem na realidade. É claro que isso envolve uma série de erros e ajustes: qualquer pessoa que está tentando formas alternativas de relacionamento, por exemplo, está fazendo uma aposta. Pode ser que dê muito certo, como pode ser que dê muito errado. Mas são apostas que nós fazemos na nossa vida diária, na forma como trabalhamos, moramos, gozamos, rimos, choramos, amamos, mas que podem nos mostrar um mundo que ainda não existe e que um dia pode virar realidade.
Talvez vocês não acreditem em mim, mas apesar da pistolagem, eu queria muito que esse texto não fosse um grande dedo na cara ou caça às bruxas. Eu não queria escrever o tipo de coisa que faz o leitor se sentir envergonhado com suas ideias e que, consequentemente, o leva a falta de diálogo. Mas eu acho que o efeito não ia ser o mesmo se eu falasse mansinho. E eu realmente queria convocar qualquer um que lesse a não desistir dos seus sonhos, mas descobrir de que outras formas eles podem se concretizar sem ser por um suposto emprego bacana. Acima de tudo, porque muitas das pessoas que eu amo ( e eu mesma, de alguma maneira) estamos no grupo dos que não podem se dar ao luxo de simplesmente se acomodar. Ou simplesmente não querem.
Eu não quero esperar pouco da vida, eu quero muito mais. Muito mais da minha carreira, das minhas relações, dos governos, da democracia, da arte. Não é justo que num mundo que as elites estão tirando tudo da gente, a primeira resposta seja nós querermos menos.
A rebelião não devia ser um privilégio.